Tudo sobre uma peça
"Tudo Sobre Minha Mãe" esteve em Lisboa e seguirá para o Porto envolta em polémica. Porquê?
Na quarta-feira passada fui até ao S. Luiz para ver a peça “Tudo Sobre Minha Mãe”, com encenação de Daniel Gorjão, uma adaptação de um dos mais bem sucedidos filmes de Pedro Almodovar. A sala estava praticamente cheia, como tinha estado antes e como esteve depois. A história de Manuela, que perde o seu filho Estevão (Esteban) e embarca numa viagem de encontros e desencontros com outras mães, atrizes, prostitutas, freiras, falsificadoras de quadro, é um belo retrato de como o laço umbilical nunca tem fim, mesmo se o filho partir primeiro. A peça faz uma homenagem ao cinema e segura o texto de Samuel Adamson (que não mudou uma linha, por causa dos direitos) com atrizes de renome como Sílvia Filipe, Teresa Tavares ou Maria João Luís. A força destas mulheres é a de continuar.
Há um momento, e poderia escrever momento com M, no palco que tudo muda: a entrada da personagem Agrado, interpretada pela atriz trans travesti brasileira Gaya de Medeiros. Ela é cor, de voz forte, é vida, pintada por um vestido brilhante, olho de diamante, autêntica, “que custa muito”, mas plástica (no silicone das mamas). É ela que dá ao público lições sobre o que é ser e o que queremos ser. Que joga no espelho da verdade e da mentira. Que fala de broches como quem fala do pequeno-almoço, que se inspira em Betty Davis, que é puta sem ter vergonha ou orgulho de o ser. Uma espécie de voz off omnipresente que nos fala sobre a verdade crua com uma leveza que nos atira para o chão a rir. Uma personagem que no filme não foi interpretada por uma atriz trans (Antonia San Juan, mulher heterossexual). Nem no filme, nem em qualquer adaptação teatral. Para mim, enquanto espectador pouco assíduo de teatro — e muito mais de cinema — dá-se aqui a maravilha. O facto de estar ali uma atriz trans a fazer um papel trans, num palco grande português, lisboeta, de um país que ainda dá os primeiros passos rumo a um setor mais igual, é, sem sombra de dúvidas, um marco cultural.
Feito este preâmbulo, vamos a pequenas notas. Não conheço a fundo a comunidade transsexual portuguesa. Não conheço a fundo as suas reinvindicações, os seus problemas, as vitórias e derrotas que têm tido nos últimos anos. Tudo o que leio está marcado pelo que se passa lá fora, especialmente nos Estados Unidos da América ou no Brasil. O que se entende: as revoluções culturais nunca poderiam ser iniciadas num país que ainda há bem pouco tempo tinha uma ditadura. Teremos de aprender com quem já começou. E isso traz vantagens, erros e alvos errados. Também não conheço a fundo o trabalho do Daniel Gorjão, do Teatro do Vão, mas sei que é dos encenadores que mais trabalho tem feito em Portugal em prol de uma maior representatividade LGBT do setor. Basta uma pesquisa rápida, conversas com quem trabalha com ele, ler entrevistas que deu. Mas há algo que já vou conhecendo bem: o meio cultural sobre o qual trabalho. Tem talentos fascinantes mas embirrações crónicas e uma rejeição à mudança de bradar aos céus.
Menti nestes últimos parágrafos. Não percebo tão bem do assunto, mas fui ver a peça sabendo que algumas figuras artísticas portuguesas queriam o seu boicote. E porquê? Porque no último acto, a personagem Lola, mulher trans, ex-marido de Manuela, pai de Sebastian e do filho da freira Rosa (Teresa Tavares) é interpretado por um ator masculino (cis, que significa ter nascido com um pénis e se identifica com o género masculino), André Patrício. Segundo os autores do manifesto “contra o casting transfake”, os autores desta peça foram protagonistas de “um ato transfóbico de prepotência cissexista e patriarcal” por terem usado este ator num papel que deveria ser de um transsexual. Fala-se “em exclusão” e “apropriação”, que exclui a comunidade cultura trans de aceder a papéis que deveriam ser seus. São palavras duras. Muito duras. Haverá uma manifestação no S. Luiz. Apela-se ao boicote.
Daniel Gorjão, diretamente visado neste manifesto — e diretamente é aqui usado como eufemismo —, tem mantido um diálogo com a comunidade, alegou constrangimentos financeiros que o incapacitaram de contratar mais atores (há atores/atrizes a “dobrar” papéis na peça) e ainda deixou uma justificação na folha de sala de “Tudo Sobre Minha Mãe”:
“Infelizmente as lógicas de produção, às vezes, impõem-se às lógicas artísticas e, aqui, não tivemos orçamento para contratar mais uma atriz para fazer apenas uma cena. O André Patrício desdobra-se em mais do que um papel. Mas a Agrado tinah de ser uma mulher trans, é o que az sentido hoje. E, ao pôr esta peça agora, isso importa. Já não estamos no mesmo ponto de discussão de quando o filme se estreou ou de há 10 anos de quando a peça se estreou. Não acredito que as pessoas trans tenham de fazer só papéis de pessoas trans, nada disso, mas estamos a dar um passo”.
Tenho poucas dúvidas que mais algum encenador em Portugal se daria ao trabalho de fazer isto. De sequer responder a um email de contestação que seja, mesmo sabendo que as salas para a sua peça têm tido uma procura constante. Não acredito que o Daniel quisesse, alguma vez, ser transfóbico. Seria um contrasenso. Também tenho poucas dúvidas sobre o sofrimento, a angústia, o medo, a raiva, a ansiedade e a depressão que alguém pode sentir quando não se sente bem no seu corpo, no seu género ou no seu sexo. E também tenho poucas dúvidas que esta contestação, que poderá ser associada à já velha lenga lenga do politicamente correcto, chegará ao conhecimento do público em geral. A mim importa-me. E interessa-me. Por vários motivos.
A liberdade artística deixou de ser um direito blindado. Há quem queira estar no lugar onde nunca esteve, deixar a sombra, ter a mesma oportunidade. Há quem já esteja farto da blackface, da “matrafona” de Torres Vedras (perdoa-me, João Baião) , da propagação de esterótipos sobre determinadas minorias em palco. Em Portugal, um país atrasadíssimo na sua indústria audiovisual, ainda vai conseguindo ter os seus momentos de progresso: já tivemos personagens trans em novelas, há atores não brancos a interpretar (ou dobrar) personagens não brancas, e temos autores de gerações mais novas preocupadas em trabalhar em conteúdos mais inclusivos. São passos. Pequenos? Certamente. Mas não se pode esperar que seja só a cultura, a eterna cultura subfinanciada (quantas companhias de teatro que trabalham peças inclusivas foram excluídas dos apoios este ano?) e com pouco público a consumi-la, a guiar a tal revolução de que falava. Não num país como este. O foco da revolta, quanto a mim, deveria estar mais para os lados de São Bento.
Ainda assim, acho que “Tudo Sobre A Minha Mãe” não cabe nesta discussão. Aquilo que para mim é normal — ver uma atriz trans a fazer uma personagem trans — é estranho para uma grande parte da sociedade portuguesa. Tenho a certeza (e aqui mesmo já sem dúvidas) de que uma mãe, um pai, uma avó, um tio olhou para a Gaya de Medeiros no S. Luiz e sentiu que a atriz não fazia parte daquilo. E também tenho a certeza que Gaya de Medeiros foi a responsável por várias discussões entre gerações sobre o significado da sua participação para um país mais igual. Se quem luta por maior igualdade alienar quem está do seu lado, vai acabar sozinho.
Um exemplo por exagero: a 8 de agosto 2018 passou a ser possível mudar o sexo e o nome no registo civil antes dos 18 anos. Isso só aconteceu porque um parlamento, sem qualquer representatividade transsexual, decidiu aprovar, concorde-se ou não, e depois de auscultar a comunidade, esta legislação. Um trabalho em parceria. Mas os autores do manifesto, numa, dir-se-á, compreensível insatisfação fruto do seu background, acreditam que naquela peça estivemos perante uma atitude transfóbica. E que não chega (aliás é até prejudicial) ter um ator trans e outro ator masculino a fazer de trans. Pois não. Mas Roma e Pavia não se fizeram num dia. O esterótipo combate-se também com empatia perante o outro que não quer ver. E digo isto, do meu canto privilegiado. Claro que houve mulheres que se revoltaram contra homens e conseguiram mais. Claro que houve homossexuais que se revoltaram contra homens e conseguiram mais. Por aí fora. Foram esses que permitiram que, hoje em dia, os direitos e garantias que existem não chegam. Frida Khalo, Harvey Milk, Eleanor Roosevelt, Virginia Woolf, a lista é infindável e vem de variadas artes e políticas. Ainda assim, creio que o mundo está mais a preto e branco do que nunca, metido em bolhas crispadas, sem que o diálogo seja possível. Escolhe um lado ou deixa-te morrer. Faz a publicação de Instagram e deixa-te andar.
Soube que toda esta contestação teve impacto emocional dentro de quem trabalhou na peça. Isso aflige-me. A arte, da pintura ao cinema, do teatro à literatura, não pode nunca ser condicionada pelos limites impostos pela maioria ou pela minoria, pelo que deve ou não ser. Deve existir e ser contestada. Deve existir e ser aplaudida. É por isso que ou regride ou avança. Acompanha os tempos ou diz-nos para onde ir. Diverte, faz chorar, deixa-nos vazios ou cheios de vida. Ou, no limite, não se vai. Ou, no limite, fazemos à nossa maneira. Um artista pedir o boicote de outro artista é, além de cruel, uma atitude profundamente cobarde que silencia a expressão do outro. Um gesto discriminatório de quem quer mais igualdade. Assim estamos.
Esta discussão que só ocorreu num nicho (pesquisa-se pelo assunto e quase nada aparece), deveria ser feita no mainstream. Eu gostava que assim fosse. Sem trincheiras. Num palco, numa reunião de condomínio, numa assembleia da República. Mas primeiro, que se veja a peça. As mulheres retratadas em “Tudo Sobre Minha Mãe” assim o merecem.